quinta-feira, 16 de maio de 2024

QUESTÃO DE DIGNIDADE, CONSCIÊNCIA, LEALDADE E EMPATIA

Questão de dignidade, consciência, lealdade e empatia

A tragédia em curso no RS é parte da crise climática decorrente de um modelo de desenvolvimento predador dos tempos coloniais, fruto da cobiça insaciável dos que hoje se alardeiam paladinos da civilização, da democracia e da liberdade. Com que moral?

É inarrável, indescritível, o drama de milhões de gaúchos que de repente se viram frágeis e impotentes ante um flagelo climático decorrente da obsessão pelo lucro acima da Vida, da Natureza e da Ciência. Desde que as etnias mais predadoras do território europeu se apossaram dos destinos de seus conviventes e depois de todos os continentes, tem sido essa a sucessão de tragédias alastradas por toda a humanidade. Não se trata de fatalidade, é crime premeditado pelos abutres do mercado e seus fantoches que têm o cinismo de se passar por paladinos da civilização, da democracia e da liberdade.

Mais que de solidariedade, que é imprescindível e inadiável, o valoroso Povo do Rio Grande do Sul é merecedor de respeito e reconhecimento de sua dignidade, por uma questão de consciência, lealdade e empatia. Altivo, o Povo Gaúcho lutou não só contra os desmandos durante o chamado período ‘imperial’, em que parte da família real portuguesa manteve sua hegemonia a ferro e fogo, perseguindo republicanos, abolicionistas e lutadores pela independência efetiva do Brasil em todos os quadrantes deste território de dimensões continentais. Não esqueçamos da brava gaúcha Anita Garibaldi, uma das protagonistas da revolução popular que em fins do século XIX consolidou a Unificação Italiana.

No século XX, o Rio Grande do Sul foi palco de célebres marcos históricos, como o início da Coluna Prestes, liderada pelo verdadeiro capitão (não como esse covardão que amarela o tempo todo, um inominável) Luiz Carlos Prestes; o levante da Revolução de 1930, sob a liderança de Getúlio Dornelles Vargas, o maior estadista brasileiro no século XX, a despeito de alguns equívocos, como o de dar guarida a camaleões como Filinto Müller, cuiabano de triste memória; a Rede da Legalidade corajosamente empreendida pelo saudoso Leonel de Moura Brizola, que enfrentou o fascismo travestido de patriotada em 1962, quando uns generecos de quepes sujos tentaram impedir a posse constitucional do vice João Belchior Marques Goulart após a renúncia inusitada do mato-grossense Jânio da Silva Quadros, e, sobretudo, as manifestações multitudinárias durante a resistência à ditadura, razão pela qual não por acaso três presidentes do ciclo foram gaúchos: Arthur da Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici e Ernesto Geisel, este último, apesar de seus vínculos com o regime de 1964, digno do reconhecimento de estadista.

“Ir passando a boiada, mudando todo o regramento e simplificando as normas ambientais”, lembra-se? É fundamental nos reportar à fala reveladora do vira-latas do inominável para o Meio Ambiente, o tal Ricardo Sales. Durante os quase dois anos e meio de desserviço ao Estado brasileiro, como todo o desgoverno do inominável, puniu fiscais e perseguiu defensores das matas, mananciais e bacias, além de incentivar a ‘exportação’ de madeira de origem ilegal. Foi pego com o bico (porque hiena não tem boca) na botija, por isso seu comparsa não pôde tê-lo mantido, mas conseguiu fazê-lo deputado federal. Ora, nem os mais inocentes acreditariam que quatro anos de desmandos e mais dois e meio de promiscuidade institucional do ‘brimo’ traíra no desmonte da proteção ambiental no País todo são pouco para descompensar o equilíbrio ambiental já fragilizado pelos anos de monocultura de exportação e tudo mais?

Enquanto o bravo e digno Povo Gaúcho trabalhava de sol a sol, alguns parasitas das castas de serviçais se deram ao despeito de jogar para baixo do tapete dos suntuosos palácios de governo, em Porto Alegre como em Brasília (isso ainda no regime de 1964), importantes projetos responsáveis pela proteção da bacia do Taquari [não o daqui, mas o do Rio Grande do Sul] e planos de contensão e drenagem e planos diretores de Porto Alegre. Durante o mandato do digno Governador Pedro Simon e mais recentemente as gestões de Olívio Dutra e Tarso Genro importantes iniciativas foram tomadas, mas interrompidas com a aparição daqueles monstrengos que serviram de fantoches para o golpe de 2016, uma tal de ‘jornalista’ Ana Memélia e seu coleguinha de mesmo naipe Lelé Xixins, nomes que devem ser apagados da história honrada do Rio Grande do Sul.

E o que os xexelentos Memélia e Xixins têm a ver com a tragédia? Como fantoches, lavarão as mãos sujas que têm, não só como péssimos ‘jornalistas’, mas verdadeiros parasitas que serviram de ancoradouro de interesses inconfessáveis ao lado do crápula Eduardo Cunha e todos os canalhas que o secundaram, inclusive o tal Aéreo Never, que com a cara lavada reaparece falando em pacificação do País, depois de ele ter ido de cócoras (ou teria sido de quatro?) à Casa Branca e ao Capitólio, nos Estados Unidos, pedir ajutório para golpear Dilma depois de perder mais uma vez as eleições em 2014.

Com a história não se brinca. Os fatos podem ser jogados na poeira do tempo, mas um dia eles vêm à tona. E reapareceram: no desgoverno do ‘brimo’ temer escariotes, as leis de privatização do saneamento e da energia foram uma das moedas de troca pelo apoio dado por ‘empresários’ canalhas ao golpe. A companhia de saneamento de Porto Alegre, entre outras, foram fatiadas por organizações criminosas transnacionais que não cumpriram as metas estabelecidas anteriormente pelas estatais privatizadas, no tocante aos planos de escoamento e drenagem e de barreiras de contensão aprovados e homologados anterior à farra pós-golpe. Podemos chamar isso de ‘fatalidade’? Nem com a maior cara-de-pau dos capetófilos espalhados por ali e alhures...

MEDIDAS URGENTES

Tempestiva e peremptoriamente, o governo federal vem estruturando diversas frentes de ações, serviços, programas e, agora, políticas regionais de governo para salvar, resgatar, acolher, proteger, socorrer e, inclusive, consolar milhares de cidadãs e cidadãos gaúchos vitimados por esse flagelo climático de proporções nunca antes ocorrido naquele estado. Não por acaso, servidores civis e militares foram designados com o de melhor de seu corpo técnico-operacional para agir com profissionalismo e urgência no socorro às crianças e adolescentes, idosos, pessoas com deficiências e adultos de todas as idades.

Além de hospitais de campanha do Ministério da Saúde, Exército, Marinha e Aeronáutica, e de postos de operação e atendimento de instituições como a Defesa Civil Federal, da Caixa Econômica Federal e de 18 ministérios do Governo Federal, Lula liberou o envio de 5,1 mil reais por família atingida pela tragédia, suspendeu a dívida do estado (RS tem a quarta maior dívida do País), enviou 67 bilhões de reais para várias frentes de ações e criou a Secretaria Extraordinária de Reconstrução do Rio Grande do Sul, cujo titular será o atual titular da Comunicação, o gaúcho Paulo Pimenta, o que não onerará o erário.

Como o governador Eduardo Leite é um ativista convicto da cartilha neoliberal, apesar das constantes escaramuças perpetradas por seus pares homofóbicos de dentro e fora do Rio Grande do Sul, ele tinha que, em plena tragédia humanitária, fazer um manifesto em prol do comércio. Seus apoiadores dizem que era necessário naquele momento dar ‘um alento’ aos empresários do estado, como muitos fizeram no início da pandemia, como ‘governo do mercado’. Primeiro que governo é do povo, que o elege para exercer em seu nome, e mais ninguém. Segundo, parece que os assessores não aprenderam com os rompantes do inominável que votos perdidos são os exatos que faltam para a vitória seguinte. Além de puro amadorismo político, sua defesa ardente foi atacada por aliados e ex-aliados, que, homofóbicos, disseram que tudo isso era por conta de seu governo não ter uma primeira-dama que lhe desse alguns toques durante as entrevistas, numa alusão ao desempenho de Janja Silva, a Companheira de Vida do Presidente Lula.

Imperdoável, contudo, é a fala infeliz de uma autointitulada ‘jornalista’ num canal de tv de Brasília. Como não pretendo dar-lhe notoriedade, tamanha a sua obtusidade, prefiro só mencionar o tamanho da desfaçatez que grassa (ou desgraça) o meio. Com ares de madame da década de 1950, a tal ‘jornalista’ tentava transmitir a solidariedade pelas vítimas da tragédia do Rio Grande do Sul, mais ou menos assim: “Claro, né? Você se põe na posição dessas pessoas que perderam tudo. Roubaram minhas joias no final de 2023. Foi doloridíssimo! Eu fico imaginando quem perdeu tudo: sua casa! Imagina uma pessoa que deu um duro danado para comprar a sua cama, seu fogão, sua geladeira, e não tem mais nada, tudo embaixo d’água!”

Se fecharmos os olhos, parece escrete feita pelo genial Jô Soares, mas, para desgraça nossa, é a trágica realidade. Poderia ser também um deboche à la Maria Antonieta, aquela que, ao saber que o povo clamava por falta de pão, sugeriu que seus súditos comessem brioches... É o que dá tirar da grade curricular disciplinas como História Geral, Filosofia, Sociologia e Antropologia Cultural nos cursos universitários. Aconteceu na nefasta Reforma Universitária do Acordo MEC-USAID, de 1968, sob a batuta do coronel Jarbas Passarinho. Aconteceu, de novo, durante os desgovernos do ‘brimo’ e do inominável. Temer vai levar para a cova ter colocado um canalha no ministério da Educação, cujo nome não cito para não lhe dar visibilidade, até por ter negociado a oferta do curso de Medicina em Corumbá com um grande grupo empresarial do ramo do ensino superior, curso pleiteado em rara unanimidade, inclusive com o Pacto Pela Cidadania, para a Universidade Federal.

Ahmad Schabib Hany

quarta-feira, 8 de maio de 2024

"Logo Ali", livro-homenagem a Ale Seher, pela Escritora e Professora Anna Lucia Almeida Dichoff


https://youtu.be/76DFNMC8smA?si=xCyRpmyFa9g6Su88

Escritora: Anna Lucia Almeida Dichoff

Ilustração: Ju Candia

Vozes/ Tradução

Português - Salim Haqzan

Árabe - Omar Faris

"LOGO ALI", livro-homenagem de Anna Lucia Almeida Dichoff a Ale Seher

‘Logo Ali’

Jovem Escritora (além de fonoaudióloga e Professora), a corumbaense Anna Lucia Almeida Dichoff homenageia em livro memorável o querido Ale Seher, com a participação das vozes e tradução de Salim Haqzan e Omar Faris.

Genial, sensível, talentoso, eloquente, solidário, generoso e, sobretudo, envolvente na criação e narrativa. Um surpreendente e inimaginável livro-homenagem ao querido Amigo Ale Seher, o imigrante sírio que se tornou corumbaense, flamenguista. É assim com que Anna Lucia Almeida Dichoff nos acolhe em seu universo leve, cheio de empatia, a nos convidar a um mundo de amor, esperança e graça.

Percebe-se sua alma leve e livre a planar sobre tamanhas adversidades, além da distância que separa a Síria, terra de Ale e de sua Família, do Brasil, este país-continente que soube acolher e proporcionar um porvir generoso a ele e a todos os seus. Captou com ludicidade e maestria o espírito peregrino desse imigrante que desde a juventude escolheu o Brasil -- e dentro do Brasil nossa Corumbá cosmopolita -- para sobreviver, viver e semear sonhos regados a suor e lágrimas, como nas fábulas árabes que líamos em nossa infância.

Deu a impressão de que estivéssemos a interagir com alguma obra do generoso e genial Gibran Khalil Gibran ou com o brasileiro mais árabe e sensível, Malba Tahan (o imortal de ‘O homem que calculava’ e muitas obras mágicas que encantaram a nossa juventude), que como Professor, embora apaixonado pelo universo árabe, jamais pôde ter viajado para lá, até porque seus derradeiros anos foram em plenos anos de chumbo. Que a generosa e dadivosa Anna Lúcia possa, sim, conhecer ‘in loco’ [êta expressãozinha embolorada!] não apenas a Síria de Ale Seher, como o Líbano de Gibran Khalil Gibran, a Palestina de Ghassan Kanafani, o Egito de Ahmad Shawki, enfim, a Arábia mágica e diversa e encantadora.

Não dá para fazer destaques, extrair parte do livro sem incorrer no indelicado terreno da expropriação: o livro (como o homenageado) é todo mágico, cuja integralidade não pode ser vilipendiada por aventuras destituídas de sensibilidade, empatia. Melhor interagir com a autora, sem intermediação, sem intervenção. Como em uma relação de Amizade, não há como recorrer a frações, fricções, sem perder a pureza, o encanto, desse depoimento revelador e cativante. Depois de duas ou três audições, não há como não se levantar e vibrar: bravo, bravo, bravo!

‘Logo Ali’ é livro ilustrado por Ju Candia tecnologicamente impactante: nas vozes de Salim Haqzan e Omar Faris, que colaboraram também na tradução do depoimento-composição de Ale Seher, imigrante sírio por anos proprietário da ‘Casa Tartous’, à rua Delamare, ao lado da não menos emblemática ‘Casa Estrela’ [depois ‘Imobiliária Perfil’] do saudoso e querido Amigo Soubhi Issa Ahmad, que entrou para a história por causa de uma brincadeira de mau gosto de outro imigrante, o ‘Turco Loiro’, mas que a Vida o protegeu por ter sido o lar do cordial e memorável Vereador Edu Rocha, poucos meses antes de sua execução a queima-roupa, a primeira casa a ser visitada pelo jovem mascate e seu atrevido diálogo inocentemente escrito em árabe.

O talento da autora já me havia sido comentado pelo querido e saudoso Augusto César Proença em um de nossos encontros derradeiros, quando se declarou seu fã desde sempre. Anos depois, o querido Amigo Armando Arruda Lacerda (que tive a honra de conhecer e desde logo privar de sua Amizade na mesma oportunidade, em que a Sociedade dos Amigos da Cultura preparava a Primeira Semana da Cultura, em setembro de 1991, portanto, há mais de três décadas), no primeiro grito de socorro pelo ILA -- ‘Abra seu coração para a cultura: adote o ILA’ --, que de novo precisa de um impulso solidário para evitar que se torne mausoléu das inúmeras peças e volumes de seu riquíssimo acervo, se é que ainda existe.

Foi assim como conheci essa conterrânea, também colega de ofício (Professora, ela com letra maiúscula!), embora não tenha tido a honra de vê-la pessoalmente. Mais um presente que devo ao querido Armando Lacerda e ao saudoso Augusto César, sem os quais a Primeira Semana da Cultura, de 1991, teria sido bem menos impactante, a despeito da participação de Amigas generosas como Nicole Kubrusly, Sidnéia Tobias, Mara Leslie do Amaral, Maria Helena de Andrade, Marlene Peninha Mourão, Heloísa Helena da Costa Urt, bem como de igualmente generosos Amigos como Rubén Darío Román Áñez, Augusto Alexandrino dos Santos Malah, Jorapimo, Lincoln Gomes, Carlos Augusto Canavarros, Luiz Carlos Rocha, Arturo Castedo Ardaya, Valmir Batista Corrêa, Lamartine Figueiredo Costa, Lécio Gomes de Souza, Salomão Baruki, Fadah Scaff Gattass, Farid Yunes Solominy, Joel de Souza, Jonas Luna de Lima, Arnaldo Gomes da Costa, Márcio Nunes Pereira, Armando Amorim Anache, José Carlos Cataldi, Cecílio de Jesus Gaeta, Adelson Martins Navarro, Airton Pereira, Armando Anache, Pedro Paulo de Barros Lima, Walmir Coelho, Mário Sérgio de Abreu, Jota Carneiro, Ziad Ibrahim e Antar Mohamed.

Foi um avant première de espaços públicos memoráveis e longevos, como o Pacto pela Cidadania (Movimento Viva Corumbá), a Ação da Cidadania contra a Fome e pela Vida e o Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de Corumbá e Ladário (atual Observatório da Cidadania Dom José Alves da Costa), como bem percebeu Lacerda, que logo me apresentou à Comissão Organizadora da Segunda Semana Social Brasileira local. Aliás, ele, Lacerda, e Ernesto Cuellar tiveram papel digno de reconhecimento histórico, ao lado de Dona Fabiana Costa, Professora Mariléia Ribeiro, Suzete dos Santos, Angélica Anache, Luz Marina Cavalcanti da Silva, Edenir de Paulo, Cristiane Sant’Anna de Oliveira, Noemi Feitosa, Fátima Garcia e todo o pessoal da agência local do Banco do Brasil, José Eduardo Katurchi, Seu Jorge José Katurchi, Seu Cláudio Dichoff, Seu Mohamad Abdallah, Najeh Mustafa, Alexandre Gonçalves dos Santos, Padre Antônio Müller, Padre Ernesto Saksida, Dom José Alves da Costa, Padre Pasquale Forin, Padre Emilio Mena, Pastor Marcelo Moura, Pastor Fernando Sabra Caminada, Pastor Antônio Ribeiro de Souza, Pastor Cosmo Gomes de Souza, Irmã Antônia Brioschi e Irmã Zenaide Britto.

Como discordar do Amigo Ale Seher -- e, por tabela, de Anna Lúcia Almeida Dichoff e, é claro!, do querido e saudoso Amigo e Companheiro Jorge José Katurchi, o argentino mais corumbaense da História, que também merece um livro com suas geniais observações --, Corumbá, sem dúvida, é o Paraíso na Terra! Além do cosmopolitismo que fecunda de modo efetivo nosso cotidiano, a fecundidade de talentosos e generosos escritores, poetas, músicos, dramaturgos e artistas plásticos, entre outros, nos incentiva a renovar nossa esperança por novo porvir, em que crianças e adolescentes desconheçam a fome, miséria, discriminação, exclusão, intolerância e recalque. É com a ludicidade e a literatura (graças à tecnologia, como arte em suas diversas formas de expressão) que construiremos um novo Renascimento -- ou Renascença, aliás, nome de uma ‘lojínia’ popular de Seu Amouri, gentil imigrante libanês Amigo de meu Avô materno que para os clientes, Seu Amorim ou Don Amurín, no coração da Feira Boliviana, onde meu saudoso Pai também se estabeleceu em meados da década de 1960.

Como o/a generoso/a leitor/a preferir, Renascimento ou Renascença. É do que estamos precisando. A cultura é o fomento da cidadania. A cultura é porta-voz do Amor, esse que foi destacado pelo homenageado da, permita-me, querida Anna Lucia. E é com autoras e autores com esse grau de generosidade e iluminura que conquistaremos essa sociedade pela qual nossos ancestrais, em todos os quadrantes do Planeta, lutaram, mas sem armas: com livros, letras, sensibilidade, empatia, solidariedade, humanismo.

Obrigado, Anna Lucia, por nos dar esperança! Como bem disse o saudoso Poeta Manoel de Barros, certa vez, em certa obra: “A minhoca areja a terra; o poeta a linguagem.” Vamos, pois, arejar nossos horizontes, com as letras, as artes, a cultura e, sobretudo, o amor, essas quatro letras que desde nossas mais tenras idades nos nutrem de civilidade, valores humanistas e, obviamente, sentimentos nobres. Com Ale Seher, na companhia das vozes de Salim Haqzan e Omar Faris, Anna Lucia Almeida Dichoff mais uma vez [pois, pelo que pude ler há pouco, ela também é autora de “Uma bailarina no Pantanal”, “Renê, o aprendiz pantaneiro”, “Olhinhos brilhando”, “Ele, o guardião da natureza”, “Minha Avó de 100 anos” e “Meu Avô de uma perna só”, todos publicados pela Letraria E-ditora] faz jus ao seu segundo nome, Lucia (sem acento), a nos iluminar a alma e o horizonte, e assim nos resgatar a esperança e, sobretudo, a infância, esse grande presente que nos clama por tempos generosos, hoje e sempre.

Ahmad Schabib Hany

quinta-feira, 2 de maio de 2024

O mestre sala dos mares - Chico Buarque e João Bosco

Elis Regina - "Mestre Sala dos Mares" (Elis Ao Vivo)

MANIFESTAÇÃO INTEMPESTIVA

Manifestação intempestiva

O comandante da Marinha, com a sua manifestação intempestiva, não contribui para o apaziguamento castrense. A volta para os quartéis, em caráter incondicional e efetivo, é indispensável para a manutenção do Estado Democrático de Direito: na história do Brasil não cabe às forças armadas poder moderador nem de tutela.

Que o setor castrense precisa agir com parcimônia e máximo rigor em suas funções e prerrogativas constitucionais, não há a menor dúvida, e isso está fora de qualquer discussão. É a Constituição de 1988 que deixou bastante claro, depois de 21 anos sob autoritarismo, ilegalidades e a penca de arbitrariedades do regime de 1964, desde a prática recorrente e sistemática da tortura até o desaparecimento de corpos de pessoas que não tinham qualquer pendência com o Estado e muito menos com a Justiça.

Aos negacionistas de plantão, adeptos do mantra do revanchismo e da conspiração à torta e direita, não custa lembrar o extenso documento produzido, ainda na década de 1990, pelo relator do STM (Superior Tribunal Militar), jurista Flávio da Cunha Flores Bierrenbach, destacando a inconsistência jurídica e falta fundamentação constitucional das acusações contra cidadãos comprovadamente inocentes que tiveram suas vidas transtornadas sem qualquer razão à luz da legalidade. Bem entendido, isso quando não foram reduzidos a cadáveres, desovados com identidades falsas e laudos forjados por médicos legistas, tão criminosos quanto os executores.

Quando os três Poderes, por meio de seus respectivos titulares, reiteraram de modo eloquente, em 9 de janeiro de 2023, a defesa incondicional do Estado Democrático de Direito consignado na Carta Constitucional promulgada pelo Senhor Diretas, Deputado Ulysses Guimarães, em 6 de outubro de 1988, não pairaram dúvidas de que o papel das instituições castrenses precisava ser recomposto após a virulenta gestão do ex-capitão desatinado desde seus anos juvenis e que por um ardil acabou cacifado para a Presidência da República, a despeito de ser comprovadamente desqualificado para relevante cargo.

Mesmo assim, o atual comandante da Marinha incorreu em manifestação intempestiva ao se imiscuir em tramitação na Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados sobre a inclusão de João Cândido Felisberto (cujo epíteto é Almirante Negro ou Mestre-sala dos Mares, na composição de João Bosco e Aldir Blanc eternizada na voz de Elis Regina durante os anos de chumbo). Na verdade, esta é a versão liberada pela censura, pois a primeira versão simplesmente foi vetada em sua totalidade pelos ídolos dos que hoje se reputam paladinos da ‘liberdade de expressão’ (sic):

Faz muito tempo nas águas da Guanabara / O dragão do mar reapareceu / Na figura de um bravo feiticeiro / A quem a história não esqueceu / Conhecido como o Navegante Negro / Tinha a dignidade de um mestre-sala / E ao acenar pelo mar / Na alegria das regatas / Foi saudado no porto / Pelas meninas francesas / Jovens polacas / E por batalhões de mulatas / Rubras cascatas jorravam das costas dos santos / Entre cantos e chibatas / Inundando o coração do pessoal do porão / Que a exemplo do feiticeiro gritava então / Glória aos piratas, às mulatas, às sereias / Glória à farofa, à cachaça, às baleias / Glória a todas as lutas inglórias / Que através de nossa história / Não esquecemos jamais / Salve o Navegante Negro / Que tem por monumento / As pedras pisadas no cais / Mas salve / Salve o Navegante Negro / Que tem por monumento / As pedras pisadas no cais / Mas faz muito tempo...” (João Bosco e Aldir Blanc, 1974, versão interpretada por Elis Regina, com ‘faz muito tempo’ em vez de ‘há muito tempo’ e ‘pelas meninas francesas’ em vez de ‘pelas mocinhas francesas’, na segunda versão de João Bosco e Aldir Blanc.)

Belíssima composição, digna da parceria imortal desses dois gigantes da MPB. Na voz da inesquecível Elis Regina, então, tornou-se um clássico do cancioneiro brasileiro. Isso tudo em pleno período de truculência da (mal)ditadura, nos anos de chumbo. João Cândido Felisberto era vivo e pôde ouvi-la, ainda que sua saúde mental já estivesse fragilizada, em decorrência de tantos atos de injustiça desde 1910, embora tivesse sido anistiado logo depois da revolta, vitoriosa ao reconhecer a ilicitude do castigo, degradante e cruel. Mas o estigma contra o Almirante Negro continua a rondar a sua memória.

Nomeado pelo Presidente Lula no início de seu atual mandato legitimamente conquistado pela vontade da maioria do eleitorado nacional e contra o qual muitos servidores públicos com e sem farda tentaram um golpe em 8 de janeiro, violando grave e acintosamente a disciplina e a hierarquia militar, inclusive oficiais de altas patentes. Nesta semana, o Almirante de esquadra Marcos Sampaio Olsen criticou em nota oficial o projeto de lei que inclui no panteão de heróis e heroínas do Brasil o nome do líder da Revolta da Chibata, João Cândido Felisberto, ocorrida em 1910, contra a tortura e os castigos físicos cometidos por oficiais da Marinha a praças afrodescendentes e pobres, um evidente castigo herdado do tempo da escravidão e que perdurara até aquela ocasião.

Mas por que condenar João Cândido, líder da Revolta da Chibata, de 1910, pela coragem e bravura de enfrentar os desmandos dos governos oligárquicos da Velha República que não haviam banido práticas hediondas, do tempo da escravidão de triste memória, quando a lei que amparava essa prática repulsiva já havia sido revogada?

Por que um comandante de uma das armas se insurgir intempestivamente contra projeto de lei que tramita há anos no Congresso Nacional -- é bom que se diga que o projeto, que iniciou no Senado da República, já tramitou e foi aprovado pelo plenário daquela casa --, quando ele, como membro de um Governo de Reconstrução Nacional, cônscio do papel histórico de assegurar equilíbrio e parcimônia dos setores castrenses, irresponsavelmente atiçados por seres totalitaristas que tentaram de tudo para romper a ordem democrática, mas que felizmente não tiveram competência e discernimento para consumar tal projeto, próprio de fascistas, facínoras, terroristas?

Quem está por trás desse conjunto de ações orquestradas para indispor o frágil equilíbrio duramente construído pelo Presidente Lula para efetivar seu projeto de responsabilidade social, responsabilidade fiscal e responsabilidade política? É nesta última responsabilidade que se sustentam todos os ocupantes de cargos institucionais do Governo Federal, sob a égide da constitucionalidade, dos valores civilizatórios e sobretudo da soberania popular. A soberania -- popular, nacional, tecnológica e alimentar -- é, aliás, a pedra angular em que se fundamenta a estratégia deste Governo de Reconstrução Nacional.

Isso cheira, sim, chantagem, revanchismo, licenciosidade daqueles que apostam no quanto pior melhor. Felizmente o comandante da Marinha tem currículo em que sua trajetória o referenda como militar institucionalista e rigorosamente focado nas atividades-fim de seu ofício. No entanto, essa manifestação intempestiva, provavelmente levada a efeito para atender ao seu público interno, não coaduna com a sua prerrogativa de membro de um governo de pacificação e de apaziguamento de um setor que só não chegou às vias de fato em 8 de janeiro porque diversos atores políticos e militares entraram em cena nos bastidores, inclusive as altas esferas diplomáticas junto à Casa Branca.

Como comandante da Marinha, é sabedor de que desde quando a política entrou na caserna pela porta dos fundos, à sorrelfa, a disciplina e a hierarquia ficaram comprometidas, e por isso ele tem que ser o primeiro a dar o exemplo à tropa e aos vários escalões do oficialato, de modo a assegurar o equilíbrio institucional e desintoxicar o pensamento comum da caserna, impregnado pela ideologia fascista disseminada pelos seguidores do inominável e seu séquito de negacionistas e obscurantistas irresponsáveis.

Não se trata de opção, e muito menos favor: é obrigação, dever histórico. A política que fique no ambiente político. E agir com comedimento e prudência é não dar combustível às labaredas espalhadas pelos quatro cantos do país. Lealdade e consciência com a Nação, com o Estado Democrático de Direito, com a História. Até porque, mesmo que tenha se tratado de um ato de insubordinação aquela revolta liderada por João Cândido Felisberto, naquele período histórico era recorrente que o jovem oficialato de todas as forças fosse às ruas defender nova ordem institucional, pois o ambiente estava todo eivado da lúgubre promiscuidade dos ‘coronéis’ (‘caciques’ políticos regionais, em sua maioria donos de terras que tratavam a coisa pública como extensão de suas propriedades, como se privada fosse) que mancharam de sangue os primórdios da vida republicana.

À exceção de alguns então jovens oficiais rebelados nos idos da década de 1920, como Luiz Carlos Prestes quando um dos líderes da Coluna Prestes (entre 1924 e 1928), a grande maioria dos generais e altos oficiais que participaram do golpe de 1º de abril de 1964 eram ex-integrantes do Movimento Tenentista ou da própria Coluna Prestes. Alguns já fora da caserna, em plena atividade política, como no caso do cuiabano Filinto Strubing Müller, que de aliado de Getúlio Vargas encerrou sua vida pública (e privada, pois morreu em seu aniversário de 73 anos no desastre aéreo de Orly, na França) como homem-forte -- líder da Arena no Congresso Nacional, depois presidente da Arena, do Senado e do Congresso Nacional -- de Garrastazu Médici, um dos mais temidos generais-presidentes do ciclo de 1964, cujo grupo da linha-dura não hesitou em apear o vice de Costa e Silva, o civil Pedro Aleixo, para impor uma junta militar cujo líder era o depois presidente de fato Médici.

Desde o dia em que as urnas mostraram seu repúdio rotundo ao golpismo fascista em 2022, as hordas de hienas que atentam contra o Estado Democrático de Direito, patrimônio do Povo Brasileiro, não são poucas e sequer agem com moderação, como a esgarçar o tecido social e a tênue baliza da garantia constitucional vigente. Não se pratica o ‘patriotismo’ atentando contra os valores democráticos, estes sim sagrados e acima de qualquer dogma ou relicário. Em nome da Democracia, pelo Brasil, é hora de somar na defesa dos valores democráticos consignados na Carta Constitucional de 1988.

Ahmad Schabib Hany